O Relatório Mundial sobre Drogas 2024 da Organização das Nações Unidas (ONU) revelou que cerca de 292 milhões de pessoas consumiram substâncias psicoativas em 2022 – um recorde histórico que representa um aumento de 20% se comparado à década passada.
Mas, afinal, o que define uma droga? Para a medicina, “droga” é qualquer substância, natural ou sintética, que altera o funcionamento do sistema nervoso central e modifica o humor, a percepção ou o comportamento.
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Elas podem ser classificadas em três grupos:
1. Fármacos
Desenvolvidas para diagnóstico, prevenção ou tratamento de doenças, essas drogas são submetidas a rigorosos testes científicos antes de serem aprovadas para uso humano com fins terapêuticos. Analgésicos, ansiolíticos e antidepressivos fazem parte desse grupo.
2. Lícitas
Substâncias cuja produção, venda e consumo são permitidos por lei e regulamentados. Elas se distinguem das ilícitas não por sua segurança (muitas são altamente danosas), mas por seu reconhecimento cultural e aceitação social, como é o caso do álcool e do tabaco.
Apesar de serem normalizados culturalmente,muitas dessas figuram entre as drogas mais perigosas do mundo. Dados da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) revelam, por exemplo, que o álcool mata 3 milhões de pessoas anualmente. Já o tabaco é responsável por 25% dos cânceres no mundo, segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA).
3. Ilícitas
São substâncias cuja produção, comercialização e consumo são proibidos por lei na maioria dos países. Tal ilegalidade está vinculada, principalmente, a riscos à saúde pública, impactos sociais e decisões políticas e históricas.
Maconha, crack, heroína e ecstasy estão entre as mais conhecidas. Dentre essas, o destaque fica para a cannabis, que, desconsiderando o álcool e o tabaco, é a droga mais consumida no mundo, segundo o Relatório sobre Drogas da ONU.
Ressalta-se, no entanto, que não existe consumo sem riscos. A diferença crucial está no grau de conhecimento e controle: enquanto os medicamentos possuem composição química conhecida, dosagem calculada e efeitos estudados, princípios ativos adulterados e concentrações imprevisíveis compõem outros tipos de drogas.
Como agem no corpo e na mente
O cérebro humano opera por meio de uma rede delicada de sinais químicos e elétricos, cuidadosamente equilibrada para manter nossas funções vitais, emoções e pensamentos. Quando substâncias psicoativas são introduzidas nesse sistema, elas desfazem esse equilíbrio e criam efeitos imediatos e, em muitos casos, mudanças duradouras.
Todas as drogas, lícitas ou ilícitas, interferem na maneira como os neurônios se comunicam. O alvo mais comum é o sistema de recompensa, uma via neural que evoluiu para nos motivar a repetir comportamentos essenciais à sobrevivência, como comer e formar laços sociais.
A velocidade com que uma substância chega ao sistema nervoso determina seu potencial viciante. Quanto mais rápido, mais intensa é a experiência de prazer – e mais difícil se torna resistir à repetição. O crack, por exemplo, produz uma onda de euforia tão breve que leva o usuário a consumi-lo repetidamente, em um ciclo que rapidamente escapa ao controle.
A recorrência faz com que o cérebro se adapte à sensação de prazer causada pela droga. Com isso, ele passa a exigir doses cada vez maiores para obter o mesmo efeito. Ao mesmo tempo, a ausência da droga desencadeia crises de abstinência, marcadas por sintomas que envolvem desde tremores até dores incapacitantes.
Do desejo à necessidade
O consumo raramente começa com a dependência. Muitas vezes, o hábito surge da combinação de fatores como curiosidade e contexto social, e segue um processo gradual que pode ser invisível até que a perda de controle se torne evidente.
A dependência química é uma doença reconhecida cientificamente. Com o tempo, o cérebro passa a literalmente depender da droga para liberar enormes quantidades do neurotransmissor dopamina, responsável pela sensação de prazer, para funcionar – quase da mesma forma que exige oxigênio ou alimento para manter suas atividades normais.
Diante dessa complexidade, os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) ajudam no tratamento da dependência química. Com equipes multiprofissionais que vão desde psiquiatras a assistentes sociais, esses espaços oferecem abordagem integral, combinando medicamentos, terapia e técnicas de reinserção social.
O caminho da recuperação, contudo, exige quebrar estigmas seculares. Quando a sociedade deixa de ver o usuário como “culpado”, para entendê-lo como alguém em sofrimento, abre-se espaço para políticas públicas realmente eficazes, as quais precisam combinar abordagens de prevenção, redução de danos e tratamento digno.
Se faz tão mal, por que tantas pessoas usam?
O uso de drogas é um fenômeno multifatorial que desafia simples explicações. A decisão de experimentar ou usar regularmente surge da interação de quatro dimensões principais: busca de prazer imediato, alívio do sofrimento emocional, pressão social e vulnerabilidade socioeconômica.
No âmbito biológico, a busca por prazer imediato encontra explicação na forma como elas sequestram o sistema de recompensa cerebral. Já no aspecto psicológico, muitas pessoas recorrem aos entorpecentes como mecanismo de enfrentamento para aliviar dores emocionais não tratadas. Essa “automedicação”, entretanto, cria um ciclo vicioso, no qual o alívio temporário é seguido de piora dos sintomas originais, o que exige doses cada vez maiores para manter o mesmo efeito.
Revisão técnica: Erica Maria Zeni (CRM 140.238/ RQE 75645), médica da Unidade de Pronto Atendimento do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo . Possui graduação e residência em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e residência em Medicina Interna pela Universidade de São Paulo (USP). Também possui pós-graduação em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium Latinoamérica Medicina Paliativa, em Buenos Aires, Argentina.