A triagem neonatal biológica, ou teste do pezinho, é um conjunto de exames feitos a partir de uma amostra de sangue do bebê para investigar se ele pode desenvolver certas doenças metabólicas, genéticas ou infecciosas.
A realização do teste do pezinho é fundamental, pois quanto mais precocemente essas condições forem identificadas, mais rápido será possível iniciar o tratamento adequado. Na maioria dos casos, os bebês acometidos por essas doenças não apresentam sintomas ao nascimento, tornando a triagem neonatal essencial.
O diagnóstico precoce, antes que qualquer manifestação clínica aconteça, melhora a sobrevida, reduz o risco de sequelas nas crianças afetadas e melhora a qualidade de vida dos bebês e de suas famílias.
Todo recém-nascido no território nacional tem o direito de ser submetido à triagem neonatal biológica. Em maio de 2021, o governo brasileiro sancionou uma lei que ampliou o número de doenças rastreadas no teste do pezinho realizado no Sistema Único de Saúde (SUS).
Como é feito o exame?
A amostra utilizada para a realização da triagem neonatal biológica consiste em gotas de sangue, secas em papel de filtro. Ela deve ser coletada após 48 horas de vida, quando o recém-nascido já foi adequadamente alimentado e, idealmente, até o quinto dia de vida da criança. Isso permite que os resultados sejam obtidos com menor risco de complicação para os bebês.
Um resultado alterado na triagem neonatal não confirma, necessariamente, o diagnóstico de nenhuma das doenças rastreadas no teste. Ao mesmo tempo, um resultado normal no teste do pezinho não exclui a possibilidade de a criança apresentar posteriormente algum comprometimento neurológico por outras doenças genéticas ou adquiridas, investigadas ou não investigadas no painel das doenças da triagem neonatal.
Por esse motivo, o acompanhamento de um médico pediatra é fundamental para assegurar o desenvolvimento e crescimento saudável do bebê.
Tipos de triagem neonatal
Entre as doenças que podem ser detectadas na triagem neonatal estão:
Hipotiroidismo congênito
Resulta da incapacidade da glândula tireoide do recém-nascido em produzir quantidades adequadas de hormônios tireoidianos, levando a uma redução generalizada dos processos metabólicos.
Quando não diagnosticado e não tratado precocemente, no máximo até 14 dias de vida do bebê, pode manifestar-se com sintomas inespecíficos, como sonolência excessiva, ou até complicações mais graves, como atraso no desenvolvimento.
O diagnóstico precoce permite uma reposição adequada dos hormônios, evitando os sintomas neurológicos graves decorrentes dessa deficiência no início da vida.
Hiperplasia congênita da adrenal
É um grupo de doenças decorrente da redução da atividade de enzimas que participam da síntese dos hormônios da adrenal (cortisol e, em alguns casos, aldosterona).
A forma mais comum dessas deficiências, se não tratada, pode comprometer o desenvolvimento dos órgãos genitais externos e, nos quadros mais graves, causar desidratação, vômitos, hipotensão (pressão baixa) e alteração de eletrólitos como sódio e potássio no sangue.
O diagnóstico precoce permite a reposição dos hormônios deficientes e a prevenção das complicações metabólicas e eletrolíticas.
Anemia falciforme e outras hemoglobinopatias
É um grupo de doenças caracterizadas pela produção anormal de hemoglobina, molécula que transporta o oxigênio nos glóbulos vermelhos. Essas alterações podem ser assintomáticas ou se manifestar com anemia, crises dolorosas e predisposição a algumas infecções bacterianas.
Diagnosticar essa condição precocemente permite orientar as famílias para reconhecerem os sinais iniciais de alarme e buscarem avaliação médica.
Fenilcetonúria
Doença causada pela redução ou ausência da atividade da enzima fenilalanina hidroxilase, responsável pela metabolização do aminoácido fenilalanina. É reconhecida como uma importante causa de deficiência intelectual, prevenível com o diagnóstico precoce e a instituição de uma dieta restrita em fenilalanina.
Galactosemias
Grupo de doenças causadas pela redução da atividade de enzimas envolvidas no metabolismo da galactose, um açúcar contido no leite. No período neonatal, o fígado é o órgão mais afetado, o que pode levar a hipoglicemia, aumento de transaminases (enzimas hepáticas), distúrbios de coagulação e encefalopatia, além de catarata e suscetibilidade a infecção por alguns tipos de bactérias.
O diagnóstico precoce e a rápida instituição de uma dieta isenta desse açúcar para o bebê evitam ou revertem as manifestações clínicas do período neonatal.
Aminoacidopatias
São doenças genéticas causadas por deficiências enzimáticas envolvidas no metabolismo de aminoácidos — a fenilcetonúria, acima mencionada, é uma representante desse grupo de doenças.
Outras alterações no metabolismo de aminoácidos como a leucina, isoleucina, valina, glicina e lisina são clinicamente relevantes nas primeiras semanas ou meses de vida. De modo geral, estas condições podem se manifestar, nas crises de descompensação metabólica, com quadros de sonolência, vômitos, convulsões e até manifestações neurológicas mais graves.
Dietas de restrição dos aminoácidos envolvidos nas diferentes deficiências enzimáticas, suplementação de vitaminas e tratamento agressivo das situações de risco de descompensação metabólica, instituídos a partir do diagnóstico precoce, garantem a melhor sobrevida e menor probabilidade de sequelas neurológicas para as crianças acometidas.
A concentração anormal de alguns aminoácidos no teste de triagem neonatal biológica também pode ser indicativa de outros grupos de doenças, como os distúrbios do ciclo da ureia.
Fibrose cística
É uma doença genética que afeta especialmente o pâncreas e os pulmões e pode causar redução na secreção de enzimas digestivas, desnutrição e predisposição a infecções respiratórias graves, com redução da expectativa de vida.
A maioria das crianças acometidas não apresenta sintomas da doença ao nascer. A identificação precoce dos casos permite estabelecer rotinas que diminuem o risco de complicações nutricionais e infecciosas.
Deficiência de biotinidase
Doença genética causada pela redução parcial ou total da atividade da enzima biotinidase. Essa enzima é responsável pela disponibilização da vitamina biotina, que se encontra ligada às proteínas dos alimentos que ingerimos, para que seja aproveitada no nosso metabolismo.
Essa doença se manifesta com lesões cutâneas disseminadas e alterações neurológicas variáveis. O diagnóstico e a suplementação precoces da vitamina, em sua forma livre, garantem que as crianças afetadas tenham uma vida saudável e normal desde a infância até a idade adulta.
Deficiência de glicose-6-gosfato desidrogenase (G6PD)
Essa doença é causada por deficiências variáveis na atividade da enzima Glicose-6-Fosfato Desidrogenase, envolvida na homeostase da glutationa, um importante agente antioxidante celular.
A deficiência dessa enzima favorece a ruptura da membrana dos glóbulos vermelhos do sangue, o que pode resultar em crises de anemia e icterícia, quando a capacidade antioxidante dos eritrócitos é desafiada por doenças agudas e/ou exposição a alguns alimentos e medicamentos.
No período neonatal, essa deficiência enzimática está associada ao agravamento da icterícia, com necessidade de fototerapia mais precocemente e por tempo mais prolongado. O diagnóstico precoce orienta uma série de medicamentos e alimentos que devem ser evitados pelos indivíduos afetados para prevenir o desencadeamento da lesão das células vermelhas e consequentes anemia e icterícia.
Toxoplasmose congênita
É uma doença infecciosa causada pelo parasita Toxoplasma gondii. A maioria dos casos de transmissão para o feto ocorre quando a mãe se contamina com o agente durante a gestação. As infecções congênitas pelo toxoplasma, se não tratadas, podem levar a acometimento ocular e neurológico.
Aplicação da espectrometria de massas em tandem na triagem neonatal
A espectrometria de massas em tandem é uma metodologia robusta empregada amplamente para a triagem de erros inatos do metabolismo intermediário. Pode ser utilizada para a quantificação de aminoácidos, a triagem de aminoacidopatias e de defeitos do ciclo da ureia, além da quantificação de acilcarnitinas, que permitem o diagnóstico das acidemias orgânicas e dos defeitos de beta-oxidação de ácidos graxos.
Esse grupo heterogêneo de doenças pode se manifestar em qualquer idade, desde o nascimento até a vida adulta. O diagnóstico precoce é fundamental para que o tratamento seja iniciado antes das primeiras manifestações das doenças, garantindo melhor sobrevida e menor probabilidade de sequelas para as crianças acometidas.
Há, ainda, outros testes adicionais de triagem:
Triagem para SCID, agamaglobulinemia e outras linfopenias de células T e B
A quantificação dos TRECs (marcador de maturação dos linfócitos T) e KRECs (marcador de maturação dos linfócitos B) pode ser realizada no teste de triagem neonatal para a investigação da imunodeficiência combinada grave (SCID, na sigla em inglês), da agamaglobulinemia e de outras linfopenias de células T e B, doenças pertencentes ao grupo dos Erros Inatos da Imunidade.
A SCID pode levar a dificuldade do bebê em ganhar peso, diarreia prolongada, descamação na pele, infecções graves e complicações com vacinas como a BCG. Quando diagnosticada cedo, um transplante de medula bem precoce pode ser indicado, o que muda acentuadamente o prognóstico da criança.
Já para a agamaglobulinemia, faz-se a reposição de imunoglobulinas para a prevenção de infecções no bebê.
Triagem neonatal bioquímica para doenças lisossômicas
Doenças lisossômicas são caracterizadas pela deficiência de enzimas específicas dos lisossomos, levando ao acúmulo de substâncias em seu interior. Os lisossomos são organelas responsáveis pela digestão de macromoléculas no interior das células, e sua disfunção pode afetar vários órgãos e sistemas.
O perfil bioquímico disponível inclui a triagem para doença de Gaucher, doença de Pompe, doença de Fabry, Mucopolissacaridose Tipo 1, doença de Niemann Pick e doença de Krabbe. Cada uma dessas doenças determina acúmulo de substâncias específicas em diferentes órgãos, incluindo cérebro, coração, fígado, músculos, vasos sanguíneos, medula óssea, articulações e pele. De acordo com os órgãos acometidos, definem-se as manifestações clínicas de cada doença.
Essas manifestações podem ocorrer em todas as faixas etárias e o diagnóstico precoce permite o tratamento dos indivíduos afetados, que envolve a infusão das enzimas deficientes em cada doença e, eventualmente, o transplante de medula óssea.
Triagem neonatal para atrofia muscular espinhal (AME 5q)
A atrofia muscular espinal é uma doença neurológica decorrente da perda da função do gene de sobrevida do neurônio motor 1 (SMN-1), levando a degeneração e perda de neurônios motores da medula espinhal e do tronco cerebral, provocando fraqueza, hipotonia e atrofia muscular.
A doença pode se manifestar em diferentes faixas etárias, e sua forma de apresentação relaciona-se com o número de cópias do gene de sobrevida do neurônio motor 2 (SMN-2). Existe uma variação normal no número de cópias do gene SMN-2 que os indivíduos possuem na população, e quanto maior o número de cópias do gene SMN-2 em uma pessoa, menor a gravidade da doença.
O teste de triagem neonatal identificará os pacientes que apresentem a deleção do éxon 7 do gene SMN-1 em homozigose (presente nas duas cópias do gene, herdados da mãe e do pai) e que correspondem a aproximadamente 95% dos casos diagnosticados.
Existem três modalidades de tratamento disponíveis, com impacto positivo na evolução da doença, principalmente quando se estabelece um diagnóstico precoce, o que justifica a inclusão dessa condição nos programas de triagem neonatal.
Revisão técnica:
Dr. Victor Nudelman, Pediatra, Alergista e Imunologista e Vice-presidente do Einstein Hospital Israelita (in memoriam)
Dra. Romy Schmidt Brock Zacharias, Coordenadora Médica da equipe de Neonatologia do Einstein Hospital Israelita / CRM SP: 94.608
Dra. Eliane Aparecido Rosseto-Welter, Coordenadora Médica do Setor de Imunoquímica e da Célula de Triagem Neonatal do Departamento de Patologia Clínica e Anatomia Patológica do Einstein Hospital Israelita/ CRM SP: 108.243
Dra. Carolina Rodrigues Boarini de Albuquerque, Pediatra, Alergista e Imunologista da Célula de Triagem Neonatal e do Setor de Imunoquímica do Departamento de Patologia Clínica e Anatomia Patológica do Einstein Hospital Israelita/ CRM SP: 149.927
Dr. Allan Chiaratti de Oliveira, Pediatra da Célula de Triagem Neonatal do Departamento de Patologia Clínica e Anatomia Patológica do Einstein Hospital Israelita/ CRM SP: 107.663